Entretanto a vida continua perdida. A vida: um barco no meio de uma tempestade, mas sem saber ir ao sabor das ondas, fica ali: estanque, parado no meio do turbilhão. E as ondas batem e batem, quer virar, ir, sair do meio da agitação. Quer encontrar um porto de abrigo, mas tem a âncora agarrada pela violência do sufoco. Aquela tempestade mantém-no ali, não contra a sua vontade, mas porque quer. Não parte porque aquele mar é dele. Ele navegou-o, conhece os seus baixios, sabe onde a corrente é mais forte. Aquele mar soube-o levar. Deslizava pelas suas águas, quase voava, deixava-se ir na ondulação. Sentia o sabor do seu sal na sua proa. Foram feitos um para o outro: um barco no mar.
Era o vento que obrigava os ramos das laranjeiras a dobrarem-se e a arranharem os vidros das janelas. O céu da madrugada era atravessado por exércitos de nuvens. Na distância que podia ser vista a partir do telhado da casa, os campos entregavam-se ao horizonte. Depois de paredes grossas, no quarto, as sombras eram definidas por uma única nesga de claridade que se estendia vertical da porta. Ao lado da cama, no chão, estava a mala. As portas do roupeiro estavam abertas. O espelho reflectia sombras. As gavetas da cómoda estavam abertas. Ele não dizia nada. Não fazia barulho quando escolhia uma camisa, a desencaixava do cabide, como se lhe tirasse os ossos e a dobrava justa e pacífica. Ele caminhava em silêncio quando se aproximava da cómoda e escolhia meias com a delicadeza com que poderia escolher flores. Atrás dos seus movimentos lentos, protegida, deitada na cama, coberta por sombras leves, estava ela adormecida e estava a sua respiração suave: marés de um oceano distante e brando.
De cada vez que pousava uma peça de roupa na mala, ele lembrava-se de quando a tinha escolhido ou de uma tarde em que a tivesse usado. Quando se preparou para fechar a mala, tinha passado muito tempo, tardes e instantes. E disse palavras no seu rosto parado. E olhou para os lábios dela como se os beijasse. Saiu. Atravessou o corredor tentanto não olhar para trás. Quando chegou á sala, pousou a mala e espalhou várias folhas de papel sobre a mesa. Em todas elas, muito devagar, desenhando cada letra, escreveu "amo-te". Depois das janelas, a hora mais fria da madrugada. Na sala, um candeeiro espalhava luz amarela pelos contornos difusos dos móveis. Ele caminhava entre os cantos da sala. Escolhia páginas dos livros que ela lia e almofadas onde ela se encostava para esconder as folhas de papel onde tinha escrito "amo-te!, entre os discos que ela ouvia mais, "amo-te", por baixo do casaco que ela tinha deixado no sofá, "amo-te".
Depois de pousar a mala no banco de trás do carro, depois de se sentar ao volante, depois de sentir a voz do motor na chave de ingnição, as árvores foram tristes na berma da estrada. O ínicio da manhã era um tom claro e cinzento, arrastado pela brisa e lançado contra a paisagem. A cada quilómetro, o olhar dele gastava-se mais de encontro á estrada. SOb as suas mãos, definitivo, o carro, como o tempo, avançava, afastava-se, quando tudo o que ele queria era regressar e nunca mais, nunca mais ter de partir.
"Aquela pequena mágoa" que se cria na conclusão de dois seres permite que o coração fique calejado. E assim se perde a inocência de querer voltar a sentir; os pés ficam enterrados no barro da terra e não há nada que nos consiga libertar e transportar para a ingenuidade daquilo que um dia aceitamos como amor. Amar é ser criança, o cérebro tolda-se, o mundo real torna-se colorido, todo o corpo vibra e quando menos esperamos, o dia a dia, o quotidiano transforma-se num parque de diversões. E somos crianças. O algodão doce é o beijo e o sabor dos teus lábios; a montanha russa foi o medo, "foi o não querer mas querer", foi o ter-te e querer-te como vida, foi o não saber se irias ou não rir com uma palavra dita; o carrossel, o teu corpo: uma vez tocado, sentido, queremos voltar uma e outra vez. Desfrutar. Mas a "conclusão" daqueles dois seres permitiu que o coração minguasse, se atarrachasse ao cérebro, quase se fundisse com ele. E o pouco que resta daquele coração serve de cofre depositário dos dias em que foste o meu dia. A amargura instala-se, a raiva (que sentimos de nós próprios) torna-se aliada, coexiste. E de criança passamos a velhos corcundas, pálidos, transfigurados, coxos da alma porque perdemos o órgão vital do querer viver. E dá-se o colapso.
Como é que se esquece alguém que se ama? Não se esquece e nem podemos escolher sacá-la do cantinho que ocupa dentro de nós. A questão que se coloca é como é que se vive a partir daquele instante em que um diante do outro escolhemos o caminho do até nunca mais. Como é que se reage a partir do último adeus? Para conseguir viver agarramo-nos ao quê? Às lembranças. Mas não ás boas, essas vamos guardar sem serem tocadas durante todo o tempo de recobro. Desta forma restam os maus momentos, onde não fomos compreendidos, onde fomos vistos como acessórios, onde nem sequer fomos considerados amigos, amantes, confidentes. Nada. Há que não abusar destas memórias pois corresse o risco de as mesmas envenenarem as recordações dos risos, dos olhares, das partilhas. Para esquecer alguém que se ama é necessário colocar em standby o coração. É necessário começar a sentir com o cérebro. É preciso fazer uma análise crítica daquilo que vivemos com aquela pessoa. E aí é que está o segredo da recuperação: perceber o quanto aquela pessoa nos fez mal, nos magou, não nos entendeu, não aceitou aquilo que somos, não percebeu o quanto lhe queríamos dar e como gostava que as coisas fossem diferentes. E devemos recordar que no último minuto foi ela que nos abandonou. E durante este recobro, utilizando o cérebro como medicamento percebemos o quão egoísta era a outra pessoa. É este o ínicio da recuperação. Perceber que não pode haver amor quando não se é compreendido. Não se pode amar alguém que não aceita o nosso ponto de vista e que nem faz um esforço para perceber o que sentimos. Não se pode amar alguém que não aceita o que dizemos e que não tem a capacidade de pedir desculpa. Não se pode amar alguém que não faz um esforço. Não se pode amar alguém que ofende o nosso íntimo, que vê nos outros alguém melhor do que nós. E que não faz cerimónia na altura de o dizer frontalmente. Não se pode amar alguém que prefere a companhia de outros à tua. Não se pode amar alguém quando nos apercebemos que não somos apenas dois, mas sim várias pessoas dentro daquilo que devia ser um lugar apenas para dois. Não se pode dizer que se ama quando não há respeito. é este o tipo de recordação que deve ser lembrado para não cair na tentação de querer voltar atrás. Este desapego e fechar do coração é parte do caminho que é obrigatório fazer. O resto até á cura final ainda está para vir.
E agora algo completamente diferente.
Querida (...),
Não sei bem por onde começar… Sei o que escrever, mas tenho medo por não saber o que vais pensar destas palavras ou sequer se vão ter algum significado para ti. E não saber o que vai na tua cabeça sempre foi a minha maior dúvida! Em todos os momentos que passamos juntos nunca deixaste que eu conseguisse perceber como era o teu sentir, nunca quiseste que eu percebesse o teu coração. E a haver algum sentimento dentro de ti tenho pena que nunca tivesses tido uma palavra para me cativares (como diria a raposa ao principezinho).
Quando se gosta de alguém tentam-se estreitar laços, faz-se todos os possíveis para “cativar”, e para isso basta uma palavra, um gesto, um toque, um sorriso! Nunca tiveste a coragem de sequer olhares para mim… E esse é o teu grande problema, nunca foste capaz de mostrar o que ia no teu coração. Não podemos ter medo de o demonstrar, não podemos ser cobardes ao ponto de pormos as culpas em alguém, cada um tem que assumir aquilo que sente.
Quando se ama, ama-se com toda a força, com toda a alma, luta-se, abana-se a outra pessoa, gritamos ao ouvido dela… tudo porque sabemos que a nossa outra parte está ali diante de nós. E se tivermos um não… caímos e ficamos em ferida, mas voltamos à carga, e se caímos novamente levantamos uma vez mais, e cada tombo só nos dá a certeza que temos de continuar a esbracejar, a gritar: “Não vou desistir de ti, porque sei que te amo!!” E ao dizer-mos isto sorrimos porque, apesar da dor, não podemos perder aquele momento de felicidade de olhar uma vez mais a pessoa que amamos. Acima de tudo temos de ser responsáveis por aquilo que sentimos e temos o dever de o demonstrar, mesmo que do outro lado a resposta seja não. Amar é muito arriscado… e no amor quantas oportunidades perdemos por medo de perder.
Lamento que não tenhas conseguido tomar as tuas próprias decisões! Lamento que sendo tu tão livre e independente, não conseguisses apenas seguir o rumo que o teu coração te pediu para seguires. Lamento que não tenhas sequer tentado transformar as tuas vontades em actos. Lamento que fosses sempre tão fria e distante, e que de todos os sentimentos, aquele que é o mais nobre de todos tu rejeites.
Eu para aqui a falar (escrever) de amor, sem saber se foi isso que se passou. Pelo menos que com estas palavras possas aprender alguma coisa.
Não és culpada mas também não és inocente. És um pouco como aqueles arguidos que são condenados por dolo eventual: querem que determinado resultado se verifique mas actuam quase de forma a que tal não aconteça.
Da minha parte se voltasse atrás no tempo faria alguma coisa de diferente? Sim.
Mas agora é um pouco tarde pelo motivo que sabemos, e por esse motivo peço-te desculpa pelo que escrevo. Devia tê-lo feito à mais tempo. Sei que este não é momento apropriado. Mas tinha que dizer tudo isto, não poderia ficar de consciência tranquila se não te desse estas palavras.
Dito isto chego à parte complicada:
Perdi-te, mas sinto a tua falta, e é por saber que te perdi que tenho que me manter afastado de ti, e no entanto, ainda que por instantes, sou obrigado todos os dias a ver a mulher linda e inteligente que te estás a tornar. Afasto-me de ti porque não suporto estar ao teu lado como se nada fosse. Como se nunca tivesse havido nada para dizer. Simplesmente não consigo. Às vezes tenho dúvidas se alguma vez de verdade tive algum significado para ti. Olho-te, sem tu reparares, e pareces-me tão distante e fria. E penso se valerá a pena agir de forma diferente.
Não espero qualquer resposta tua porque sei (e esta é a única certeza que tenho) o quanto te custa partilhar o que quer que seja (pelo menos comigo). Já há muito tempo que perdi essa esperança.
Leio e releio estas frases… e percebo que falta muita coisa.
Não sei como vou conseguir olhar para ti depois de saber que leste estas linhas, mas antes que perca eu a coragem para te enviar esta “carta” fico por aqui.
Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água ao amanhecer,
sabe a cal molhada, sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua, ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca, ao cair da noite sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.
Eugénio de Andrade
Um beijo minha querida
(Sete anos depois encontrei-te, continuas linda. Ver os teus olhos e lembrar-me de tanto... Nunca tive dúvidas, continuas a fazer parte de mim, da melhor parte de mim. simS continuo a amar-te desde o primeiro momento que me sentei junto a ti naquela aula de francês. Em muito tempo este foi o dia mais feliz... sabes o que é engraçado? toda a gente reparou no meu sorriso. Tanto tempo depois continuas a marcar-me. O texto em baixo foi escrito à algum tempo...)
Queria sair daqui e poder resgatar-te de quem te tirou de mim e seria como num conto de fadas. E fugiríamos para longe, e viveríamos errantes num hotel rasca, numa cidade suja em plena Índia, e apenas nos víamos um com o olhar do outro, e seríamos únicos, e a nossa fome seria de mim e de ti, e vestiríamos o calor dos nossos corpos num quarto imundo, e bebíamos da chuva do céu quando estivéssemos dentro de um comboio apinhado de gente a caminho do Nepal, e quando chegássemos com o corpo dorido da viagem cairíamos no colo que está à espera de mim e de ti num qualquer caminho poeirento, e ficávamos a olhar o céu protegidos na sombra um do outro porque até isso amamos, a sombra, e bastava, e subiríamos a um qualquer mosteiro perdido no tempo e no espaço e contemplaríamos o deus do amor, do nosso amor, e seríamos deuses idolatrados roubando crentes a todos os sentimentos, e a cegueira da angústia seria curada e veríamos por entre pessoas que apenas olham o chão e não usaríamos máscaras de representar porque o nosso amor nos purificou e…..Um dia vou voltar a ti e juntos continuamos a nossa história.
(Hoje, passados sete anos foi o dia. Apenas te olhei. mas hoje foi o dia)
Um beijo minha querida..
Passado tanto, tenho a impressão que nossa história ainda não acabou..... Tem de haver mais alguma coisa.
A morte nada é. Eu apenas estou do outro lado. Eu sou eu, tu és tu. Aquilo que éramos um para o outro Continuamos a ser. Chama-me como sempre me chamaste. Fala-me como sempre me falaste.Não mudes o tom da tua voz, nem faças um ar solene ou triste.Continua a rir daquilo que juntos nos fazia rir. Brinca, sorri, pensa em mim, Reza por mim. Que o meu nome seja pronunciado em casaComo sempre foi; Sem qualquer ênfase, Sem qualquer sombra. A vida significa o que sempre significou. Ela é aquilo que sempre foi.O ‘fio’ não foi cortado. Porque é que eu, estando longe do teu olhar, Estaria longe do teu pensamento?
Espero-te, não estou muito longe, somente do outro lado do caminho.
Como vês, tudo está bem.
Um Beijo minha querida
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
. ...
. (...)
. (...)
. Tratamento para esquecer ...
. A carta
. (...)