Era o vento que obrigava os ramos das laranjeiras a dobrarem-se e a arranharem os vidros das janelas. O céu da madrugada era atravessado por exércitos de nuvens. Na distância que podia ser vista a partir do telhado da casa, os campos entregavam-se ao horizonte. Depois de paredes grossas, no quarto, as sombras eram definidas por uma única nesga de claridade que se estendia vertical da porta. Ao lado da cama, no chão, estava a mala. As portas do roupeiro estavam abertas. O espelho reflectia sombras. As gavetas da cómoda estavam abertas. Ele não dizia nada. Não fazia barulho quando escolhia uma camisa, a desencaixava do cabide, como se lhe tirasse os ossos e a dobrava justa e pacífica. Ele caminhava em silêncio quando se aproximava da cómoda e escolhia meias com a delicadeza com que poderia escolher flores. Atrás dos seus movimentos lentos, protegida, deitada na cama, coberta por sombras leves, estava ela adormecida e estava a sua respiração suave: marés de um oceano distante e brando.
De cada vez que pousava uma peça de roupa na mala, ele lembrava-se de quando a tinha escolhido ou de uma tarde em que a tivesse usado. Quando se preparou para fechar a mala, tinha passado muito tempo, tardes e instantes. E disse palavras no seu rosto parado. E olhou para os lábios dela como se os beijasse. Saiu. Atravessou o corredor tentanto não olhar para trás. Quando chegou á sala, pousou a mala e espalhou várias folhas de papel sobre a mesa. Em todas elas, muito devagar, desenhando cada letra, escreveu "amo-te". Depois das janelas, a hora mais fria da madrugada. Na sala, um candeeiro espalhava luz amarela pelos contornos difusos dos móveis. Ele caminhava entre os cantos da sala. Escolhia páginas dos livros que ela lia e almofadas onde ela se encostava para esconder as folhas de papel onde tinha escrito "amo-te!, entre os discos que ela ouvia mais, "amo-te", por baixo do casaco que ela tinha deixado no sofá, "amo-te".
Depois de pousar a mala no banco de trás do carro, depois de se sentar ao volante, depois de sentir a voz do motor na chave de ingnição, as árvores foram tristes na berma da estrada. O ínicio da manhã era um tom claro e cinzento, arrastado pela brisa e lançado contra a paisagem. A cada quilómetro, o olhar dele gastava-se mais de encontro á estrada. SOb as suas mãos, definitivo, o carro, como o tempo, avançava, afastava-se, quando tudo o que ele queria era regressar e nunca mais, nunca mais ter de partir.
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